Friday, October 23, 2009

Saramago "perigosamente" perto de Deus

(artigo baseado na discussão pública sobre o livro "Caim" e nas opiniões sobre religião verbalizadas por Saramago)

Com o lançamento do novo livro "Caim", Saramago revela-se mais cristão que 95% dos "cristãos" portugueses e, provavelmente, 90% dos "cristãos" a nível mundial. Poder-se-á mesmo dizer que o escritor está "perigosamente" próximo de Deus.

Em primeiro lugar, neste livro, Saramago interessa-se fundamentalmente pela personalidade de Deus. Estuda-a através da análise dos relatos do Velho Testamento em que são descritas várias interacções de Deus com diversos homens. O escritor questiona os motivos, procura entender o funcionamento da mente de Deus, procurando a Sua lógica: "porque é que Deus atentou à oferta de Abel e não à de Caim?", "porque é que Deus pediu a Abraão que sacrificasse o seu filho, tendo depois anulado este pedido à última hora?", "porque é que permitiu Deus sofrer Job, um homem de integridade inatacável, de quem Deus se orgulhava?".

Este interesse do Nobel da Paz é particularmente oposto ao do típico "cristão", que se centra na perspectiva de que Deus é quase como um supermercado. Para o "cristão", Deus aparece nos seus pensamentos apenas quando lhe falta qualquer coisa como sejam saúde, dinheiro, sucesso, etc. Mas Saramago interessa-se pelo estudo da personalidade de Deus, mesmo numa altura em que a sua saúde já não é de ferro e em que a proximidade da morte não leva à "chico-espertice" de ir à missa para "recuperar pontos perdidos". A fazer fé no texto de Apocalipse "antes prefiro que sejas frio que morno" que remete para clarificação de propósitos e intenções, creio que Deus terá certamente um apreço especial por Saramago.

Em segundo lugar, Saramago opõe-se fortemente à religião instituída. Curiosamente, o clero foi o único grupo social que Jesus atacou abertamente e ao ponto da violência física como nos é relatado no episódio dos vendilhões do templo. Jesus chegou a utilizar expressões como "sepúlcros caiados de branco" e "raça de víboras" quando se dirigia aos religiosos. Vê-se bem que Saramago e Deus, na pessoa de Jesus, não podiam estar mais de acordo.

Saramago pretende despertar as consciências para além do marasmo do dogma religioso e para um novo nível de exigência intelectual. Também aqui o escritor segue o exemplo de Jesus que quebrou propositadamente com as tradições religiosas da época: jantou com os marginalizados da sociedade em várias festas e encontros, bebeu vinho, trabalhou ao sábado, etc. Jesus também apelou a uma nova exigência intelectual: a da integridade e do descentrar do ego. "Misericórdia e amor (querer o bem) em vez de sacrifícios religiosos", dizia Jesus.

Finalmente, Saramago mostra também a sua indignação, reprovação e descontentamento a respeito da conduta de Deus nas passagens do Velho Testamento em foco no livro. Mais uma vez, o escritor se comporta como alguém próximo de Deus. David (o que lutou contra Golias) escreveu várias canções em que também revelava o seu descontentamento pelo abandono de Deus por si sentido. O próprio Jesus disse "Pai, porque me desamparaste?".

Talvez Saramago não saiba. E talvez o clero português também não entenda. Mas o escritor está "perigosamente" perto do verdadeiro cristianismo e, consequentemente, de Deus. Ver-se-á, também desta vez, que os extremos sempre se tocam.

1 comment:

Anonymous said...

Tenho sempre sentido que Saramago implora por respostas. Gostaria de crer e implora por resposta, implora por ajuda para poder abraçar esse Deus que procura, que quer entender